Sector do calçado ganha ao têxtil na batalha da internacionalização

As indústrias do calçado e do têxtil, integradas nos chamados sectores tradicionais, tiveram as mesmas condições à nascença: pequenas unidades fabris, mão-de-obra intensiva e dependência total da subcontratação. Os dois sectores beneficiaram da subsidiação indirecta das desvalorizações do escudo e receberam depois importantes ajudas comunitárias (329,2 milhões de euros).

Ambos viram sair as multinacionais e as encomendas de grandes cadeias de distribuição (Benetton e Zara) e sofreram o embate da concorrência asiática, principalmente nos produtos de gama mais baixa.

Apesar de tanta coisa em comum, os dois segmentos apresentam agora níveis de internacionalização diferentes. O sector do calçado exportou, no ano passado, 91,8 por cento da sua produção e esteve sempre acima dos 80 por cento desde 1995. No mesmo ano, o sector têxtil exportou 60,4 por cento da sua produção e está acima dos 50 por cento desde 1995.

O peso da produção dos dois sectores na Europa (25 países) também revela alguma diferença. O sector têxtil, de acordo com os dados disponíveis, manteve, de 1998 a 2004, uma quota ligeiramente acima dos quatro por cento, enquanto o calçado registou um crescimento de 22 por cento, passando de 8,5 por cento (1998) para 10,5 por cento (2008).

Em dimensão, estes dois sectores não são comparáveis: o calçado representa cerca de um quinto da produção do têxtil (1,3 mil milhões contra 5,7 mil milhões), e o mesmo se passa no número de trabalhadores (35 mil contra 163 mil). Mas esta proporção não teve correspondência na distribuição de apoios comunitários, já que o sector do calçado conseguiu captar mais. O montante recebido por cada sector, dividido pelo número médio anual de trabalhadores, revela que o têxtil recebeu 1180 euros por trabalhador, valor que no calçado sobe para 1404 euros.

Referindo-se à diferente capacidade exportadora dos dois sectores, Paulo Vaz, director-geral da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP), lembra que, ao contrário do sector do calçado, que importa a quase totalidade da matéria-prima que utiliza (essencialmente pele), o sector têxtil funciona como uma cadeia integrada, produzindo boa parte da matéria-prima (fiação e tecelagem) que é utilizada nas outras fileiras (têxteis-lar, confecção e vestuário).

Sobre a maior capacidade de captação de fundos comunitários, Paulo Vaz não tem dúvidas de que o facto de o sector do calçado ser mais pequeno tem representado uma vantagem importante, na medida em que foi possível definir estratégias adequadas aos sistemas de incentivos.

Também para Augusto Mateus, professor universitário e antigo ministro da Economia, a menor dimensão do sector do calçado e a existência de uma só associação empresarial facilitaram a mais rápida modernização. Para este ex-governante, o Centro Tecnológico do Calçado também teve "um papel importante".

Há ainda outra razão que ajuda a explicar o diferente grau de internacionalização destes dois sectores de actividade e que se prende com a liberalização do comércio mundial. É que, ao contrário dos têxteis, cuja liberalização total só chegou em 2005, o sector do calçado começou muito cedo a ter de competir com os grandes produtores asiáticos, uma vez que não havia quotas de exportação para a Europa. Esta concorrência levou o sector a optar definitivamente pelos produtos de gama mais alta, procedendo a uma forte modernização tecnológica e a uma aposta na componente de moda e design.

Pelo contrário, o sector têxtil esteve durante anos protegido pela fixação de quotas reduzidas à China, iniciando-se a liberalização total das exportações apenas em 2005.

Para compensar o embate, necessariamente violento dados os baixíssimos custos de produção asiáticos, os sectores têxteis português e europeu receberam apoios comunitários específicos (como os programas Retex e IMIT). Mas estes programas representaram, nas palavras do director geral da ATP, "um presente envenenado". É que as exportações da China cresceram desmesuradamente, inundando o mercado mundial e conseguindo anular a produção de países mais pequenos (como o Vietname e o Bangladeche) e mesmo a da índia, subvertendo boa parte dos princípios que estavam subjacentes ao acordo de liberalização.

Outro factor negativo decorre do facto da representatividade do sector têxtil ter estado repartida por várias associações que, durante anos, funcionaram de costas voltadas. Só muito recentemente a maioria das associações passou a estar integrada na ATP, que representa agora toda a fileira industrial, mas ainda com algumas associações de fora.

Os desafios que os dois sectores agora enfrentam são semelhantes: conseguir manter as vendas num mercado globalizado e altamente competitivo. O ex-ministro Augusto Mateus e Paulo Vaz defendem que, mais do que a aposta em marcas e lojas próprias - uma batalha vencida por algumas empresas dos dois sectores, mas que exige forte músculo financeiro e é mais arriscada -, o calçado e os têxteis têm de apostar no desenvolvimento de relações "business to business". Ou seja, conceber e fabricar produtos de elevada qualidade que serão distribuídos por outras empresas, através de alianças e parcerias.
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